Eu tenho demonstrado aos meus alunos o risco da prescrição de estatinas devido aos seus graves e frequentes efeitos colaterais neurológicos. Gostaria de dizer que por princípio não tenho preconceitos contra nenhum medicamento convencional. Se houver indicação precisa, e forte evidência científica apoiando a boa prática médica, eu poderia prescrever qualquer substância, inclusive estatinas, embora nunca as tenha prescrito. Por hora, me mantenho cético sobre a utilidade das estatinas.
Vejamos um caso clínico.
“Um paciente de 25 anos faz uma avaliação médica de rotina. Ele nega problemas de saúde e não toma medicamentos regularmente. Diz que seu pai teve um infarto agudo do miocárdio (IAM) aos 36 anos de idade, e morreu de complicações de outro IAM aos 49 anos. O irmão mais velho submeteu-se a exames médicos recentes e teve o diagnóstico de "colesterol alto". Exame clínico: pressão arterial 125x74 mmHg, frequência cardíaca de 72 bpm, peso 82,5 Kg e altura 1,72m. O risco de IAM nos próximos 10 anos calculado pela escala de Framingham foi 2% (http://hp2010.nhlbihin.net/atpiii/calculator.asp - acesso em 18/10/2012) Exames laboratoriais: colesterol total 362 mg/dL, HDL 36 mg/dL, LDL 266 mg/dL, e triglicerídeos 362 mg/dL.”
Se não houvesse uma intensa e crescente atividade de marketing e propaganda martelando dia e noite o meu cérebro que colesterol alto provoca doença cardiovascular e cerebrovascular, eu não associaria o nível sérico de colesterol a doença cardíaca ou cerebral. Se alguém me dissesse que essa associação era real, eu poderia responder: "Espere, porque o nosso organismo iria produzir uma substância tão agressiva para ele mesmo? Como posso compreender esse fato em termos biológicos e evolutivos? Se a teoria da evolução está correta, como a seleção natural contribuiu para que a síntese de colesterol ocorresse em todos os mamíferos se, aparentemente, essa é uma característica prejudicial?
Como se sabe, o colesterol é o lipídio mais sintetizado pelos mamíferos. A cada dia, nossas células produzem cinco vezes mais colesterol do que nós obtemos na alimentação. Se a ingestão aumenta, diminui a produção endógena. Por isso, é fácil "controlar" os níveis séricos. Não é possível manter o cérebro, os nervos, os músculos sem colesterol. A parede celular seria destruída. Não haveria fluxo de íons e moléculas através das membranas, nem potencial de ação, cérebro e vida, como a conhecemos. Hormônios sexuais e cortisol são sintetizados modificando a estrutura molecular do colesterol. A vitamina D é sintetizada de forma parecida, com ajuda do sol. Se todos esses fatos são verdadeiros (e são) a lógica seria "quanto mais colesterol melhor".
Então, voltando ao caso, o “colesterol alto” seria de fato a causa da propensão familiar para doença cardiovascular, ou estamos vendo apenas uma correlação? Não se pode negar que as estatinas baixam os níveis séricos dos lipídeos. Mas a questão não é essa. A questão é, serve para alguma coisa baixar os níveis séricos dos lipídeos? Outra questão, qual o preço a pagar, em termos clínico (efeitos colaterais) e econômico. Se nos basearmos na literatura para a prescrição de estatinas não pisaremos em território seguro. O que vamos encontrar é contradição. Por exemplo, vale a pena ler a Archives of Internal Medicine de 2010;170(12). Vejam o editorial e dois artigos publicados sobre estatina nessa edição. Eu espero que a leitura lance alguma dúvida em quem prescreve despreocupadamente essa classe de medicamentos. O artigo que possibilitou a liberação comercial da rosuvastatina foi refutado. Outro artigo, uma metanálise, é positivo para o uso de estatina para prevenção de todas as causas de mortalidade.
Os artigos:
Original Investigation. Cholesterol Lowering, Cardiovascular Diseases, and the Rosuvastatin-JUPITER Controversy: A Critical Reappraisal. Arch Intern Med. 2010;170(12):1032-1036.
Review Article: Statins and All-Cause Mortality in High-Risk Primary Prevention: A Meta-analysis of 11 Randomized Controlled Trials Involving 65 229 Participants. Arch Intern Med. 2010;170(12):1024-1031.
Voltando novamente ao caso. Se a decisão para o nosso paciente for prescrever estatina estaremos em uma espécie de campo minado: perigo por todos os lados. Eu não largaria esse paciente. Nos primeiros três meses, eu realizaria exame neurológico mensal para avaliação da função neuromuscular (CPK incluído) e cognitiva. Estaria alerta para qualquer síndrome da mialgia/artralgia. Avaliaria função renal e hepática regularmente. Posteriormente, a cada três meses repetiria o exame neurológico, sempre com exames laboratoriais (CPK, função hepática e renal) e informaria ao paciente sobre da necessidade de reavaliação caso ocorresse alguma fraqueza muscular, síndrome dolorosa, sensação de "que a cabeça não está boa". Em resumo, iríamos transformar iatrogenicamente um rapaz saudável em um paciente potencialmente grave. Baseado em uma conjectura. Observe, nem toda pessoa cuj o pai morreu precocemente morrerá precocemente. Em estatística isso se chama regressão à média.
Vejamos outro caso clínico. “Uma mulher de 69 anos foi diagnosticada de "colesterol alto" em fevereiro/2005. Foi prescrito sinvastatina 20 mg ao dia. Após três meses, ela passou a se queixar de dor muscular e artralgia que piorou gradativamente. A dor foi estimada em 8/10 pela escala numérica de dor, e atrapalhava muito as atividades da vida diária. Ela se submeteu a radiografia da coluna cervical e lombar, que mostrou "osteopenia, alterações degenerativas das vértebras, espondilolistese em C3-C4 e suspeita de pneumonia". Esse resultado justificou a realização de densitometria óssea. A síndrome dolorosa se agravou ao longo dos meses. Ela se sentia cansada e sem forças. Deixou o trabalho. Nessa época, foi feito diagnóstico de artrite reumatóide, complicada por possível neuropatia. Foi prescrito meticorten, arava, duoloxetina, gabapentina , amitriptilina e citoneurin. Além das medicações para "baixar o colesterol e a pressão". Em 2009, submeteu-se a exame neurológico que revelou tetraparesia com predomínio proximal, CPK 566 UI/L. Dor muscular e articular difusa 10/10, nos quatro membros.”
Nesse caso, vemos uma paciente com miopatia e síndrome dolorosa de mialgia/artralgia secundária ao uso de sinvastatina. A relação entre o quadro clínico e o uso da estatina não foi percebida na época do início dos sintomas neuromusculares, o que precipitou a cascata medicamentosa que nada ajudou a paciente. Era necessário suspender a sinvastatina em 2005. Há justificativa para prescrição quase compulsória de estatinas para pacientes jovens, de meia-idade, ou idosos, com níveis séricos de colesterol acima dos valores normais? Eu não vejo evidências que justifiquem essa conduta.
O artigo que introduziu a prática de prescrever estatinas em medicina foi publicado na New England Journal of Medicine (NEJM) em 1995 (ver Shepherd et al.Prevention of Coronary Heart Disease With Pravastatin in Men With Hypercolesteroemia. NEJM.1995;333:1301-1307). Esse trabalho tem um grande número de problemas (ver Hadler, NM. Worried Sick. Chapel Hill. The University of North Caroline Press. 2012, 397p para uma ampla revisão crítica do artigo) o menor deles é que foi patrocinado pela Bristol-Meyers Squibb Pharmaceutical Research Institute, proprietária da pravastatina.
Mas vamos ficar na neurologia e analisar outro trabalho mais ou menos recente sobre o uso da atorvastatina (Lipitor) para prevenção secundária de doenças cerebrovasculares (High-Dose Atorvastatin after Stroke or Transient Ischemic Attack.NEJM 2006;355:549-59). Poderia ser qualquer outro, mas para facilitar escolhi um artigo que eu já havia lido.
Os autores examinaram 4731 pacientes de 25 países que tinham sofrido acidente vascular cerebral (AVC) nos recentes seis meses. Eles dividiram, por sorteio, os pacientes em dois grupos, metade tomou Lipitor 80 mg por dia, e metade tomou placebo. O desfecho primário foi o primeiro AVC, fatal ou não-fatal. O objetivo era baixar o colesterol LDL e ver o que acontecia (desfecho). Os pacientes foram seguidos por aproximadamente cinco anos. Houve recorrência de AVC em 311 (13,1%) pacientes no grupo placebo, e 265 (11,2%) no grupo atorvastatina. Essa diferença foi estatisticamente significante. A redução de risco para AVC no grupo atorvastatina em relação ao grupo AVC foi de 2,2% em cinco anos. Os autores concluíram que "em pacientes com AVC ou ataque isquêmico transitório recente, sem doença coronariana, 80 mg de atorvastatina por dia pode reduzir a incidência global de AVC e eventos cardiovasculares, apesar de um pequeno incremento na incidência de AVC hemorrágico" (sic).
Para analisar um ensaio clínico devemos considerar a sua veracidade, relevância e aplicabilidade. Em relação à veracidade, tenho restrições a esse estudo. Em minha opinião, nesse artigo há um grave viés. Todos sabem que o uso de estatinas baixa pesadamente os níveis de colesterol sérico. E não seria difícil para os avaliadores saber qual paciente pertence a que grupo observando os resultados do lipidograma. Se o examinador não é cego para as prescrições ele perde a objetividade. No estudo se descreve um artifício para evitar esse viés. "... se o LDL caísse abaixo de 40 mg/dL em um paciente tratado com atorvastatina, o investigador do grupo placebo era notificado, se escolhia ao acaso um paciente desse grupo e os níveis séricos de colesterol eram medidos novamente em ambos os pacientes". No meu entender, esse procedimento não eliminaria o viés.
Outro problema, há várias conclusões definidas por análises secundárias. Por exemplo, no grupo placebo ocorreram mais eventos cardiovasculares (está na conclusão inclusive), revascularização, e incidência de ataques isquêmicos transitórios. Devido ao aumento do erro tipo 1, é melhor desconsiderar conclusões baseadas em análises secundárias. A metodologia não foi elaborada para esses desfechos.
Uma omissão grave. Os autores não discutiram porque ocorreu um percentual maior de mialgia e rabdomiólise no grupo placebo em relação ao grupo tomando atorvastatina. Esse resultado é contra-intuitivo, porque se esperaria exatamente o oposto ( ver Campbell, WW. Statin myopathy: The iceberg or its tip? Muscle & Nerve. 2006;34:387–390). Outra omissão grave. Não se descreveu o nível socioeconômico dos pacientes e a ocorrência de doenças vasculares nos familiares, o que é seguramente um fator de confundimento. Essas duas variáveis são fatores para maior incidência de doenças vasculares.
Em relação à relevância, nada tenho a criticar. É sempre importante a realização de pesquisas de prevenção de doenças vasculares.
Em termos de aplicabilidade. Os resultados desse estudo me levariam a modificar a minha prática? Eu diria não. Um grande NÃO! Vamos aos dados. No grupo atorvastatina ocorreram 265 (11,2%) AVC, contra 311 (13,5%) no grupo placebo. Uma diferença de 46 casos. Isso nos permite calcular o exato número de pacientes que necessários para tratar por ano (NNT) para obtermos o benefício do uso do atorvastatina em 1 paciente. Esse número é simplesmente a recíproca de 1,9%, e se obtêm dividindo-se 1 pela probabilidade do benefício. No caso, o número que nós queremos é 13,1%-11,9% = 1,9%, em decimal 0,019, dividido por 1, que nos dá o NNT igual a 52,6 pacientes/ano. Então, teríamos de tratar 52,6 pacientes por ano para termos um presumível benefício. Não há nenhuma vantagem clínica nem econômica.
Por exemplo, ao preço de hoje, na Paraíba, uma caixa de Lipitor com 10 comprimidos custa R$124,89 (www.consultaremédios.com.br/medicamento/lipitor - acesso em 18/10/2012) se gastaria R$4.496,00 por ano, por paciente para manter o tratamento. Os efeitos colaterais graves levariam a exames médicos de controle e seguimento que encareceriam o tratamento. Sem levar em conta a dubiedade dos resultados expressada nos trabalhos científicos.
Outro problema sério com esse estudo é o conflito de interesses, incontornável em minha opinião. A NEJM, que deve ter ganho muito dinheiro com a venda de separata do artigo, no mundo todo, em várias línguas, tratou logo de dirimir a sua responsabilidade (o que é impossível) acrescentando uma nota afirmando que os oito autores assumiam ampla responsabilidade pelo conteúdo global e integridade do artigo.
Aqui está um fato curioso. Vamos conhecer quem são os autores. Pois bem, dois são empregados e acionistas da Pfizer, a empresa proprietária do Lipitor; quatro outros receberam proventos da Pfizer. Isso abre a porta para todas as formas de parcialidade, consciente e inconsciente. Para mim, a vinculação dos autores à Empresa patrocinadora desqualifica o trabalho. Sendo assim, por que ir adiante e não jogar logo no lixo trabalhos desse tipo? Por que em seguida à publicação do artigo é que começa a parte verdadeiramente quente, a propaganda e marketing para vender o remédio (ver Angell, Marcia. The truth about the drug companies. New York. Random House, 2004, 352p.). Nós precisamos saber disso para que não a nossa prescrição baseada em propaganda. Seguramente, em um próximo Congresso a indústria organiza um Simpósio, esses resultados são apresentados acriticamente por um expositor bonito e bem falante. Se ele convencer, digamos, 100 neurologistas a prescrever Lipitor para, vamos dizer, cinco pacientes em um ano, o custo com a medicação será de R$2.248.000,00/ano para todos os pacientes. Prescrição baseada em um estudo controverso, clinicamente e eticamente.
Os artigos citados podem ser resgatados realizando pesquisa avançada no Google escrevendo a frase “Pubmed single citation matcher”. Escreva o nome da revista, o ano, o volume e a primeira página do artigo. Não é necessário escrever o nome dos autores (Uffe Ravnskov. Ignore the Awkward. 156p.)